domingo, 19 de agosto de 2012

A alma do vinho




A alma do vinho assim cantava nas garrafas:
"Homem, ó desherdado amigo, eu te compús,
Nesta prisão de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico em que há só fraternidade e luz!

Bem sei quanto custa, na colina incendida,
De causticante sol, de suor e de labor,
Para fazer minha alma e engendrar minha vida;
Mas eu não hei de ser ingrato e corruptor,

Porque eu sinto um prazer imenso quando baixo
À guela do homem que já trabalhou demais,
E seu peito abrasante é doce tumba que acho
Mais propícia ao prazer que as adegas glaciais.

Não ouves retinir a domingueira toada
E esperanças chalrar em meu seio, febrís?
Cotovelos na mesa e manga arregaçada,
Tu me hás de bendizer e tu serás feliz:

Hei de acender-te o olhar da esposa embevecida;
A teu filho farei voltar a força e a cor
E serei para tão tenro atleta da vida
Como o óleo que os tendões enrija ao lutador.

Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia,
Grão precioso que lança o eterno Semeador,
Para que enfim do nosso amor nasça a poesia
Que até Deus subirá como uma rara flor.


Charles Baudelaire

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